segunda-feira, 6 de novembro de 2023

QUEIME DEPOIS DE LER


Nota 8 Sátira a paranoia e a ganância dos americanos coloca astros vivendo papeis atípicos


Os irmãos Joel e Ethan Coen, que dividem diversas funções quando planejam um novo filme, parecem que nunca deixaram de estar em evidência desde a década de 1980. A imprensa mundial trata de transformar a estreia de cada novo trabalho dos cineastas em um verdadeiro evento, os apaixonados por cinema ficam de olho no nascimento de novos possíveis filmes cults e o público se divide entre aqueles que não compreendem as obras da dupla e aqueles que são fãs confessos de sua filmografia, se bem que nessa turma que fala que gosta pode haver um bom número de viajantes que só confirmam o positivismo para não serem rotulados de bobões, incultos e afins. Sim, a filmografia dos Coen ganhou uma imagem de algo tão interessante, crítico e inovador que até gera certo pavor em alguns de confessarem que não apreciam o tipo de trabalho deles. Depois que eles ganharam o Oscar por Onde os Fracos Não Têm Vez aí sim remar contra a maré seria quase como um suicídio para alguns. O fato é que depois de enveredarem por uma narrativa mais séria eles voltaram as suas raízes destilando veneno na comédia Queime Depois de Ler, uma sátira aos filmes de espionagem que tanto lucram e enchem os cofres de Hollywood. 

Como os Coen não dão ponto sem nó, esta narrativa está cheia de boas alfinetadas para a sociedade americana, porém, recados que também servem para pessoas de outros países. Muitos adoram e consideram uma das comédias mais inteligentes já feitas. Para outros, o filme é esquisito demais e não dá para ser levado a sério, mas há uma razão para tal repulsa. O elenco, repleto de estrelas talentosas e premiadas, encarna tipos totalmente diferentes. O longa tira um sarro com alguns estereótipos que circundam o cinemão hollywoodiano e seus bastidores. Cada personagem é um ser patético e quem dá vida a eles são grandes astros que infelizmente possuem uma imagem engessada aos olhos do público. Talvez aí esteja o segredo do repúdio que este filme causa para alguns. Não é todo mundo que acha divertido ver os galãs George Clooney e Brad Pitt interpretando sujeitos vazios e apatetados, tampouco aprovam a pouco glamorosa Tilda Swinton para fazer papel de amante ou ver Frances McDormand querendo rejuvenescer e abocanhando um dos protagonistas. Esses são apenas alguns exemplos da ousadia dos cineastas neste trabalho aparentemente ingênuo, mas a ideia é muito boa convenhamos. Dar papeis fora dos padrões aos quais os atores estão acostumados é um exercício e tanto para eles e um respiro para os espectadores que podem ver outras facetas dos intérpretes, como o sério John Malkovich fazendo exercícios físicos guiando-se por um programa de televisão, uma cena um tanto bizarra.


Ironizando tudo que é possível, o longa acaba mostrando que todos temos um lado ridículo e fantasioso e existe identificação com quem assiste de forma sadia, sem nunca ofender. O roteiro, de autoria dos próprios Coen, é cheio de reviravoltas envolvendo um grupo de pessoas distintas, mas que tem a burrice como elemento de identificação. A história começa quando Osbourne Cox (Malkovich), um agente da CIA, é expulso da companhia e passa a dedicar seu tempo para escrever no computador suas memórias contendo detalhes reveladores. Katie (Tilda), sua esposa, fica espantada ao saber da demissão, mas logo deixa o assunto de lado por estar mais interessada em seu amante, Harry Pfarrer (Clooney), um policial fajuto que nunca usou sua arma. Enquanto isso, Linda Litzke (Frances), funcionária de uma rede de academias, faz planos para realizar algumas cirurgias plásticas e tem no bobalhão Chad Feldheimer (Pitt), um professor de ginástica, seu melhor amigo. Justamente essa dupla atrapalhada acaba descobrindo um CD no vestiário de onde trabalham e se interessam pelo conteúdo. Os números e informações que encontram julgam serem de arquivos confidenciais e então eles pretendem lucrar com isso. Mal sabem eles que um corre-corre por nada está prestes a começar. 

Os caminhos deles vão se cruzando de formas tortas e cada um precisa aprender a lidar com a vida dupla que são obrigados a sustentar. Somente o professor paspalhão da academia e que se acha o maioral consegue manter-se fiel a sua personalidade e, por um golpe de sorte talvez, é graças a ele que ocorre uma virada na trama. Apesar dos tipos estranhos que criaram, os Coen sabem dar a todos eles uma dose de humanidade que evita que caiam no caricatural. Todavia, as cenas mais engraçadas ficam a cargo de dois elementos fora do núcleo principal. David Rasche e J. K. Simmons interpretam dois agentes que ficam analisando o desenrolar dos fatos que envolvem roubo, chantagem, sonhos, traições e até morte, tudo por causa de um arquivo digital que não vale nada. Outros trabalhos do Coen, como Fargo e O Grande Lebowski, também possuem enredos que são desenvolvidos em cima de fatos insólitos criados através de equívocos e mal entendidos dos personagens, porém, aqui eles apostaram bastante também no humor visual (que o diga a personagem Linda que se espanta com uma cadeira muito especial). Apesar de o roteiro ser uma perseguição em busca do nada, somente Cox sabe disso, fora das telas ele tem muito a dizer, como a respeito da paranoia e da ganância financeira, este último mais um tema bastante comum na filmografia dos Coen. 


As situações fantasiosas que os personagens criam beirando ou até mesmo ultrapassando os limites da loucura são um dos pontos-chaves para a fácil identificação do espectador. Qualquer um pelo menos uma vez na vida já fez jus ao velho ditado "quem conta um conto aumenta um ponto" e aqui temos a materialização do conteúdo da frase. Também é destacada a importância da imagem, da estética nos dias atuais. Em contrapartida, a mulher que busca a perfeição em seu corpo e o seu colega de trabalho que esbanja boa saúda e beleza física não possuem nada no cérebro que os faça ser invejados. No conjunto, os Coen conseguiram reunir um elenco invejável graças ao poder que seus nomes exercem, mas não souberam aproveitar toda essa turma, a maioria já vencedores dos principais prêmios de cinema, inclusive o Oscar. Alguns se sobressaem e outros parecem não achar o tom do personagem. Todavia, os cineastas conseguiram aliar, ou melhor, criticar o cinema de massa inserindo algumas mensagens pertinentes nas entrelinhas do roteiro, assim mantendo a essência da filmografia de humor negro que conquistou a crítica mundial, ainda que neste caso a imprensa especializada não tenha se derretido totalmente ao talento dos irmãos. Com chances de se aproximar de um público maior, na realidade, Queime Depois de Ler só precisa de um voto de confiança por parte da plateia que deve ao menos tentar assistir para tirar suas próprias impressões. Só é uma pena que provavelmente muitos chegarão a conclusão de que o título mais adequado seria "Queime Depois de Assistir".

Comédia - 96 min - 2008 

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2 comentários:

Jean disse...

queime depois de ler, é uma comédia elegante por vezes sedutora e parcialmente violenta, os acontecimentos vão se sucedendo para um final eletrizante, recomendo...

Rafael W. disse...

Brilhante. Não é pra menos, é um filme dos irmãos Coen.

http://cinelupinha.blogspot.com/