NOTA 7,0 Suspense com um pé na fantasia marca virada na carreira do cineasta M. Night Shyamalan, mas obra é aquém do esperado |
É muito bom praticamente começar uma carreira atingindo o
sucesso instantâneo, mas manter-se no topo é complicado. Após o estrondoso
sucesso de O Sexto Sentido o diretor M. Night Shyamalan viu seu prestígio pouco
a pouco declinar a cada novo trabalho. A crítica especializada, salvo algumas
exceções, e o público em geral foram severos nas avaliações, embora fique mais
latente que as pessoas não compreenderam as intenções do cineasta em seus
projetos seguintes. Após a avalanche de críticas negativas ao infelizmente mal
interpretado A Vila, o cineasta voltou a causar barulho com A Dama na Água,
projeto que trazia uma ruptura significativa em sua trajetória profissional.
Além de mudar seu estilo narrativo drasticamente, tal trabalho também foi o
primeiro a não ser lançado pela Disney, empresa que projetou o indiano para o
mundo e lhe bancou quatro longas (antes ele já trabalhava, mas em produções
menores em seu país natal). A separação aconteceu por divergências de ideias. A
produtora queria lucros e o diretor arte, uma equação que dificilmente traz
resultados positivos para ambos os lados. Shyamalan optou por seguir seus
princípios e acabou acertando e errando. A mudança de ares foi positiva para
que ele não se enrolasse ainda mais na própria armadilha que criou, a de criar
filmes que obrigatoriamente se sustentam sob a expectativa de uma revelação
surpresa. Por outro lado, a decisão reforçou o conceito da sorte de
principiante, de que dificilmente ele chegaria a realizar uma obra de nível ao
menos similar a da história do garotinho que podia ver e falar com os mortos. Em
seu primeiro longa com narrativa totalmente linear, então bancado pela Warner,
Shyamalan, além de dirigir, produzir e até atuar, também se encarregou de
roteirizar uma trama baseando-se em um conto de ninar que contava aos seus
filhos envolvendo o mundo aquático. Apesar desse detalhe, o longa está longe de
ser uma fábula infantil, assumindo um lado sombrio e dramático que dialoga
melhor com os adultos. Bem, isso para aqueles que deixarem o preconceito de
lado e se permitirem literalmente mergulhar nesta obra. A história gira em
torno de Cleveland Heep (Paul Giamatti), um ex-médico que perdeu a mulher e a
filha há alguns anos e amargurado jogou tudo para o alto e decidiu viver
recluso em um prédio residencial onde trabalha como zelador. Seu pacato cotidiano
sofre uma transformação drástica quando passa a desconfiar que alguém está
constantemente usando a piscina fora do horário permitido e certa noite ele flagra
uma garota desconhecida nadando. Com pele, olhos e cabelos claríssimos e fala
mansa, ela é Story (Bryce Dallas Howard), uma narf, espécie de ninfa aquática dos
contos infantis que está sendo perseguida pelos scrunts, criaturas do mal parecidas
com lobos que desejam impedi-la de retornar ao Mundo Azul, seu habitat natural.
Story não está por acaso na piscina do condomínio. Ela veio
ao mundo dos humanos com a missão de fazer com que um dos moradores, um
escritor, consiga terminar o seu livro sobre questões políticas que no futuro
servirá de inspiração para um líder dos EUA, alguém que terá o poder de mudar a
história da humanidade. Sim, ela tem o dom de fazer previsões e assim revelar o
destino dos habitantes daquele edifício e pouco a pouco todos estão unidos para
ajudar este ser mágico que não imaginava que algo poderia dar errado no
percurso para cumprir sua tarefa. Com a ajuda de Young Soon (Cindy Cheung), uma
das vizinhas, Heep descobre as origens dos narfs e que a garota poderia estar
correndo risco de desaparecer para sempre. Bem, a premissa é bastante
interessante e estava na moda naqueles tempos em que elfos, fadas, duendes,
trolls e companhia bela passaram a ser reconhecidos como potenciais geradores
de lucro. Contudo, os narfs eram uma incógnita. Não são seres fantásticos
pertencentes aos folclores e contos populares, pelo contrário, foram criados
por acaso por Shyamalan para entreter seus filhos e pela boa aceitação deles
viu no material sustância para transformá-lo em filme e fugir dos clichês
infantis. O grande problema desta obra está justamente na transformação da
ideia em enredo. Ficamos conhecendo a história do Mundo Azul ao mesmo tempo em que
Heep toma conhecimento. Procurando se ater a condução da história e tornar
crível tal universo fantástico ao espectador, o cineasta acabou exagerando um
pouco na dose. Além de uma breve animação explicando um pouco da fábula logo na
introdução, a opção da mesma em seguida ser esmiuçada nos mínimos detalhes
acaba deixando a narrativa monótona e sem brechas para o espectador se sentir
fazendo parte da ação, embora, por outro lado, a realidade dos humanos ganhe
muito mais destaque e não seja satisfatório o modo como o mundo imaginário foi
explorado. É difícil imergir nessa fantasia truncada. A lentidão com que a
trama se desenrola, algo acentuado pelo fato de Heep e Story serem as únicas
personagens mais bem delineadas, acaba fazendo com que os pontos falhos se
sobressaiam, como a fácil adesão dos coadjuvantes à história do mundo
fantástico e seus seres e que todos são peças fundamentais para salvar a jovem.
Quem é mais crítico certamente já sente uma pontinha de desconforto nesse
excesso de magia, mas não deixa de ser agradável perceber, ainda que de forma
tímida, que todos os residentes do edifício têm sua função, apresentam alguma
característica marcante, seja normal, como o viciado em palavras cruzadas, ou
excêntrica, como o homem que se sujeita a experiência de malhar apenas um lado
do corpo para comparar as diferenças com o outro que fica inerte.
Paul Giamatti finalmente conseguia um papel principal em
produção de destaque após anos se dedicando a tipos coadjuvantes, ainda que
antes deste convite ele já chamava a atenção em obras como Sideways – Entre
Umas e Outras e A Luta Pela Esperança. Cheio de ternura e humildade,
dividindo-se entre o drama provocado por lembranças do passado e certa dose de
humor devido a uma gagueira, a identificação com seu personagem introvertido é
praticamente instantânea. Heep talvez seja a grande marca do cineasta indiano
nesta obra. Em todos os seus trabalhos anteriores existia ao menos um
personagem masculino vítima de algum trauma do passado e o elemento fantástico
era adicionado à trama para ajudá-lo a lidar com tal conflito. No caso, ajudar
Story é a forma que o zelador encontra para se redimir um pouco dos problemas
que envolveram sua família. Bryce Dallas Howard, a filha do diretor Ron Howard
e destaque de A Vila, também está perfeita como a narf, criando uma personagem
sensual, misteriosa, mas ao mesmo tempo muito frágil, algo que fica evidenciado
pelos olhares da atriz. É fácil nos compadecermos com o conflito de Story e
torcermos para que ela ganhe um final feliz, embora se tratando de um filme de
Shyamalan sempre exista aquela expectativa de que algo inesperado possa
acontecer. Contudo, a grande surpresa do longa é justamente o diretor atacando
de ator, porém, o impacto é positivo e ao mesmo tempo negativo. Ele já havia
feito pontas em seus outros trabalhos, mas neste caso abraçou um personagem de
peso e essencial para a conclusão do filme. Ele dá vida a Vick, o tal escritor
que a ninfa deve ajudar a concluir aquela que seria a obra literária que
mudaria o futuro. Bem, sua interpretação deixa muito a desejar, mas sua
inserção neste aspecto na obra tem uma simbologia importante. O cineasta, na
discussão mercado versus arte, acabou se sentindo incompreendido pela indústria
e não queria se sujeitar a ser um fantoche obediente, pois acredita que sua
visão de cinema ainda será reconhecida no futuro. Seu personagem, portanto, é
uma metáfora da realidade e mais um sinal da ruptura que este profissional
desejava para se livrar das amarras que lhe engessavam a um modelo único de
trabalho. Muito boa também a ideia de um dos moradores do edifício ser
justamente um crítico de cinema, uma maneira bem-humorado de Shyamalan
alfinetar aqueles que se acostumaram a detonar suas obras. O Sr. Farber (Bob
Balaban) é a representação da insatisfação do diretor, tanto que ele ironiza a
situação quando alguns dos moradores do edifício comentam sobre a arrogância do
crítico a ponto de julgar o trabalho de outra pessoa. O destino deste formador
de opiniões é um soco no estômago para seus representantes da vida real, mas
nem por isso fez com que muito deles segurassem o verbo na hora de avaliar A
Dama na Água, filme cujo principal problema é a assinatura do cineasta indiano.
Como diretor ele consegue criar uma atmosfera envolvente utilizando pouca luz e
ângulos de câmera interessantes e segura o suspense não revelando completamente
e tão pouco apressadamente o que seriam visualmente os scrunts. Fora sua
atuação questionável, o roteiro arrastado e por vezes confuso até poderia ser
perdoado se fosse feito por outra pessoa, mas é justamente o peso do nome
Shyamalan que atrapalha. Espera-se algo bem superior dele, mas prestando
atenção nos pequenos detalhes, simbologias e até no que esta obra representou em
sua filmografia, até que ele não é tão ruim como diziam na época do lançamento.
Suspense - 110 min - 2006
Um comentário:
Apesar de um retumbante fracasso de crítica e público, particularmente aprecio ao que se propõe essa produção. Não se compara aos filmes anteriores do cineasta, mas também não justifica a intensidade negativa de críticas que recebeu. Parabéns pelo blog. Aproveitando o ensejo, gostaria de convidá-lo para uma visita também.
abraço
marcelokeiser.blogspot.com.br
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