segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

MUITO GELO E DOIS DEDOS D'ÁGUA


Nota 4 Apesar das boas intenções, longa tropeça em suas própria ânsia pela originalidade


Daniel Filho se tornou uma espécie de Midas do cinema nacional com o sucesso de Se Eu Fosse Você. Será mesmo? Embora tenha repetido o feito com a sequência da comédia protagonizada por Glória Pires e Tony Ramos, o diretor colecionou mais fracassos que sucessos no campo cinematográfico. Experimentando outros gêneros e formas de fazer cinema, ele se arriscou a lançar o filme de humor negro Muito Gelo e Dois Dedos D’Água, mas a recepção não correspondeu as expectativas. Elenco com nomes famosos e talentosos, direção segura, inovações visuais e narrativas e apelo cômico que parece ser o eixo de sustentação do cinema nacional. A receita não poderia dar errado, mas a opção por piadas pesadas e excessos de palavrões e de atitudes condenáveis dos personagens acabou afastando o público. Bem, quem já acompanhava os seriados de TV assinados pela dupla Fernanda Young e Alexandre Machado, como "Os Normais", já sabia o que esperar, mas é certo que muitos se surpreenderam com o que encontraram. Filho entrou no espírito dos roteiristas e procurou trabalhar com o politicamente correto, algo corriqueiro em séries e filmes americanos. Se ajudamos a indústria dos besteiróis de Hollywood, por que não podemos ter produtos similares brasileiros? Na teoria faz sentido, mas na prática não é tão fácil.

As irmãs Roberta (Mariana Ximenes) e Suzana (Paloma Duarte) possuem personalidades distintas, bem como suas rotinas, mas há um detalhe em comum do passado que trata de reaproximá-las quando adultas: o desejo de vingar-se dos maus tratos da avó Judite (Laura Cardoso). Quando eram crianças, a idosa as atormentava com conceitos rígidos a respeito de educação e etiqueta e o convívio era ainda mais torturante na época das férias quando costumavam passar vários dias em uma casa de praia. Para exorcizar os demônios do passado, elas armam um plano para sequestrar a avó e a levarem para passar um final de semana na residência que foi palco de verdadeiros pesadelos das garotas. Roberta consegue golpear a avó e a coloca em seu carro desacordada e parte para buscar a irmã para finalmente começarem a esperada vingança, mas o trio terá companhia nessa louca viagem. Francisco (Thiago Lacerda), marido de Suzana, implora para que ela não faça a viagem usando como desculpa o aniversário do filho deles, mas na verdade ele não quer a esposa na companhia de Roberta que julga ser um mau exemplo em vários aspectos. Contudo, o desejo de vingança fala mais alto e esta mãe de família decide sair da linha, o que obriga o marido a segui-la para evitar alguma catástrofe. 


A viagem ainda agregará Renato (Ângelo Pares Leme), um advogado um tanto careta que Roberta salva de uma confusão em um restaurante. Ele cai de gaiato nesta história e mal sabia ele o que viria a acontecer. O prato principal do longa é justamente os percalços do passeio que podem curiosamente tanto provocar gargalhadas quanto constrangimentos. Entre belas locações litorâneas de Alagoas, provavelmente fazendo as vezes de alguma praia deserta carioca, Francisco se perde do rastro das irmãs e acaba perdido e protagonizando cenas bastante divertidas, principalmente por conta de um cachorro bravo que encasqueta em persegui-lo, além de viver apuros com a polícia. Todavia, é na abandonada casa de praia que o bicho pega. Ambientes sujos, móveis empoeirados e quintal atolado de folhas secas e mato. Dos males esses são os menores para a vovó dopada. Seguindo as regras que a própria impunha no passado, as netas passam a colocá-la para se bronzear de forma forçada, afinal de contas uma pele corada é sinal de boa saúde. Também fazem depilação, alisam seus cabelos e fazem suas unhas, pois mulheres peludas, com cabelos desgrenhados e mãos mal tratadas passam más impressões. Todos esses cuidados são aplicados com aquele jeitinho especial que só Judite sabia ensinar. Bagunça é a palavra de ordem nessa casa e o exagero é onipresente, tanto que até contagia o recatado Renato que acaba caindo na farra com as garotas.

A trama se sustenta com diálogos ruins, absurdos e muitos palavrões, uma forma talvez do próprio roteiro procurar reafirmar ao espectador a cada dois minutos que ele está acompanhando uma comédia e que rir deve ser essencial. O problema é que não estamos acostumados a assistir filmes de estilo besteirol sem o áudio inglês e isso é um entrave e tanto. Muitos gargalham ao ouvir um gracejo à uma formosa mulher acompanhado da imagem de seu bumbum e peitos em closes generosos, mas ainda nos impactamos ao ouvir alguém falar em alto e bom som o nome chulo dado a genitália feminina como no caso de uma frase marcante profanada por Ximenes que tenta dar alguma dignidade ao longa com mais uma boa interpretação e surpreendendo com um visual rebelde. Já Duarte, Leme e Lacerda apresentam atuações corretas dentro daquilo que lhes pediram, no entanto, é uma pena ver um talento como da veterana Cardoso sendo desperdiçado em nome do riso fácil e praticamente sem falas. Colocar uma idosa em situações ridículas é garantia de gargalhadas? Talvez sim em um país como o nosso em que o idoso é desrespeitado, mas se no início é divertido ver a atriz se submetendo a maus tratos como um trabalho diferenciado em seu currículo, não demora muito para nossa paciência se esgotar.


A introdução apresentada em animação com aspecto de rascunho aponta para novos conceitos de como fazer filmes no Brasil, mas logo as frescuras de pós-produção como cortes ultra rápidos, sobreposição de planos e deformações nos corpos dos personagens via computação gráfica passam a não contribuir em nada com a trama, inclusive os flashbacks em desenho que soam desnecessários já que nos diálogos ficam claras as humilhações pelas quais Roberta e Suzana passaram. A abordagem dos conflitos entre gerações não precisa necessariamente servir a apenas dramas, mas a forma encontrada para explorá-la aqui no campo do humor é um tanto bizarra. Contudo, o anarquismo da produção na reta final abre caminho para resoluções sentimentais, mas já é tarde para salvar Muito Gelo e Dois Dedos D’Água que pode ser visto com algum valor pela ótica de ser um projeto experimental, uma tentativa de fazer algo diferente e que surpreendesse o público. Passaram um pouco do limite do tolerável quando alguns ajustes no texto poderiam render um projeto mais redondinho. Em tempo: o título é uma referência a forma como Roberta prefere beber uísque já que não gosta do sabor da bebida, só de seu efeito entorpecente. O próprio filme é um porre que não tarda a subir à cabeça. Você desliga o cérebro e embarca nessa viagem ou então prepare-se para uma ressaca precoce. 

Comédia - 96 min - 2006 

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