terça-feira, 26 de maio de 2020

O LENHADOR


Nota 8 Tema polêmico é abordado a partir de conflitos de homem dividido entre tentação e perdão


Cinema não é só diversão. Também é cultura e uma forma eficiente de trazer à tona temas espinhosos que a sociedade em geral tende a esconder debaixo do tapete. A pedofilia é um desses exemplos, mas que ainda encontra dificuldades para ser exposto a um grande público. Não é a toa que O Lenhador foi um grande fracasso nas bilheterias em todo o mundo, ainda que reúna um excelente texto a boa interpretação do subestimado Kevin Bacon. Outrora trabalhando sob pressão dos estúdios que forçosamente queriam que ele se transformasse em um astro rentável, a maturidade lhe trouxe sabedoria e ele aprendeu a escolher melhor os projetos que levariam seu nome. Aqui ele dá via à Walter, um homem de meia-idade que passou doze anos na cadeia. Quando liberto em regime condicional, ele decide refazer sua vida em sua pequena cidade-natal, mas não encontra apoio dos amigos ou familiares, exceto de Carlos (Benjamin Bratt), seu cunhado, mas que também não esconde o receio de que sua filha pequena possa vir a se tornar alvo dos instintos sexuais do tio. Conseguindo um emprego em uma madeireira, aos poucos ele tem a chance de redescobrir o amor graças a proximidade de Vicki (Kyra Sedgwick), que também tem problemas com seu passado e precisa superá-los para seguir em frente. Sua situação faz com que ela não julgue e tampouco olhe com estranheza para o rapaz e compreensão é o que ele mais precisa neste momento. 

Contudo, Walter não parece satisfeito com as coisas que estão acontecendo e prefere se manter o mais reservado possível para evitar que os colegas de trabalho ou quem quer que seja o discrimine. Ser um ex-presidiário já é um fardo e tanto a ser carregado, imagine então se descobrem o motivo de sua prisão? Os crimes de pedofilia não são tolerados nem mesmo pelos presidiários, até os assassinos psicopatas repudiam. É como se fosse um código de honra adotado nas cadeias: quem ousa abusar de uma criança não merece uma segunda chance e assim os demais presos espancam e estupram tais criminosos constantemente, podendo levá-los ao óbito, mas caso sobrevivam às torturas terão tido uma dolorosa lição que os fará pensar não só duas, mas três, quatro ou cinco vezes se voltarão a sentir desejo por um menor. O problema é que Walter está vivendo em um apartamento em frente a uma escola de ensino básico, o único lugar que achou cujo dono aceitava alugar para um ex-preso, e precisa lutar diariamente para que as tentações não voltem a corrompê-lo, por isso também está passando por sessões de terapia, porém, não consegue se abrir com ninguém completamente. O título simples, mas intrigante, não é apenas uma alusão ao trabalho que Walter consegue buscando novos rumos para sua vida, mas principalmente tem uma relação de intertextualidade com o famoso conto da Chapeuzinho Vermelho. O sargento Lucas (Mos Def), é quem faz a comparação. Muito hostil, declaradamente ele odeia pedófilos e está encarregado de vigiar os passos do recém-liberto, nutrindo a expectativa de que a qualquer momento poderia prendê-lo novamente por conta de algum desvio de conduta. 


Certa vez, o policial relembra o citado conto que em sua versão original é um tanto soturno. O lenhador, usando seu machado, é quem salva a garotinha de ser devorada pelo malvado lobo que acaba sendo partido ao meio, mas Lucas lamenta que na vida real figuras heroicas como ele estão em falta, deixando implícito que a pena de morte seria a melhor solução para punir pedófilos e evitar que novos surjam. Bem, essa visão é sem dúvida compartilhada por grande parte da população mundial, mas o longa da roteirista diretora Nicole Kassell propõe ver a situação por outro ângulo. Simplesmente julgar sem dar a chance do acusado se defender é coisa de gente egoísta e prepotente. É muito fácil apontar o dedo para alguém, mas é um tanto difícil reconhecer que tal pessoa pode ser doente. Aliás, é complicado para ela própria assumir isso para si mesma. Walter nunca agrediu ou matou meninas, porém, não resistia aos impulsos de tocá-las de forma inapropriada ou se masturbar observando-as à distância, uma forma de satisfazer suas vontades. Todavia, não temos como comprovar se o que o levou à prisão foi apenas uma afronta a moral e os bons costumes. Baseado na peça teatral de Steven Fechter, também coautor da versão cinematográfica, o roteiro não deixa explícito o passado pecaminoso do protagonista. Não sabemos quantas garotas ele assediou e tampouco se foi preso em flagrante em alguma situação comprometedora, assim é possível que o espectador sinta compaixão do personagem, afinal ele pode ter sido vítima de maldosas queixas. 

Buscando a humanização da figura do pedófilo, procurando fazer com que o público reflita antes de dar um veredito final quanto a sua conduta, Kassel pode ser acusada de maniqueísmos por apresentar o protagonista como um doente mental, mas vamos combinar que quem faz o que é errado e repete a mesma coisa outras vezes definitivamente não está em seu juízo perfeito. Walter ainda não chega a ser um pervertido altamente perigoso porque tem consciência de que o desejo que nutre por garotinhas é errado e procura ao máximo controlar seus impulsos. Vivendo no fio da navalha entre o repúdio e atração de seus instintos, é praticamente impossível o enxergarmos como um vilão, isso não só graças a profundidade do personagem, mas também a construção brilhante do mesmo feita por Bacon. Através de gestos e olhares melancólicos, além do silêncio quase inquebrável, o ator convida o espectador a conhecer um pouco da atmosfera triste em que o pedófilo vive mergulhado, um mundo no qual ele se sente sempre na mira dos outros ao mesmo tempo em que luta para não ser notado. Embora seja essencialmente um drama, o longa ainda ganha pontos por ser adornado por uma irresistível aura de suspense. Além de vez ou outra Walter ser assombrado por aparições de menininhas, frutos de sua imaginação como se a própria quisesse testar seu equilíbrio, ainda temos uma subtrama de que existiria realmente um pedófilo agindo atualmente nos arredores da casa do serralheiro. 


Walter observa de sua janela que um homem constantemente está nas redondezas da escola vizinha e precisa ficar esperto, pois a qualquer incidente envolvendo um menor certamente a responsabilidade seria creditada a ele. O espectador, no entanto, também fica com essa dúvida até os últimos minutos quando acontece uma marcante cena com clima do conto da Chapeuzinho Vermelho. Walter consegue ficar a sós em um bosque com uma garota que ele já observava a algum tempo no colégio, conseguindo estabelecer um diálogo desconcertante com ela, chegando a indagar se ela gostaria de se sentar em seu colo. Então ele teria a chance de assumir mais uma vez o papel de lobo ou a proeza de se transformar no lenhador. Aclamado pela crítica, O Lenhador é uma obra que tinha tudo para ser repugnante, mas que conquista desde o início com excelentes personagens, situações críveis e envolventes e com uma parte técnica impecável, desde a trilha sonora melancólica até a fotografia tingida de cores sóbrias, sendo que o vermelho se faz presente em alguns momentos para reforçar o prazer associado aos desejos proibidos do protagonista. Lançado em uma época em que a temática estava em evidência no mundo do cinema (Sobre Meninos e Lobos e Má Educação são outros polêmicos títulos do período), esta produção continua atualíssima e merece ser descoberta. Deixe os preconceitos de lado e invista nesta opção.

Drama - 87 min - 2004

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