quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O PALHAÇO

NOTA 8,0

Longa mostra a realidade dos
artistas circenses através do
olhar de um palhaço que busca
sua identidade fora do palco
Em meio ao bombardeio de inovações tecnológicas e efeitos especiais de última geração que chegam aos nossos cinemas e ao mercado de vídeo doméstico semanalmente não é de se espantar que um simples filme brasileiro perca espaço, podendo ter uma exibição restrita ao circuito alternativo e de arte ou até mesmo ser lançado diretamente em DVD sem qualquer tipo de respaldo publicitário. Ainda bem que existem apreciadores e realizadores para obras mais simplórias e com preocupação maior com o conteúdo, pessoas realmente apaixonadas pela sétima arte.  É isso que o ator e diretor Selton Mello prova com a sua segunda incursão cinematográfica atrás das câmeras após Feliz Natal, seu elogiado drama de estreia. O Palhaço é uma produção relativamente simples, mas que conquista a atenção dos espectadores com seu visual colorido e história emocionante e extremamente simpática, contando com diversas citações para homenagear aqueles que já trouxeram muita alegria ao público, como o quarteto dos Trapalhões e Oscarito. A história gira em torno do palhaço Pangaré (Selton Mello), uma das estrelas do circo Esperança que, infelizmente, cada vez mais sente a escassez de público a cada nova cidade que passa. As grandes gargalhadas, olhares curiosos e expressões de felicidade de outrora ficaram como uma doce e inesquecível lembrança para a maior parte dos funcionários e artistas. Porém, o rapaz que ainda continua bem jovem e com disposição usa e abusa de expressões corporais e faciais e lança mão de algumas piadas mais fortes para conseguir segurar a atenção do público e manter a sua trupe circense em atividade. Bem, essa imagem positiva ele tem no picadeiro diante da plateia, mas nos bastidores a coisa é bem diferente. Seu nome de batismo é Benjamim e o rapaz anda muito insatisfeito com a vida que leva, um incômodo que aparentemente só ele tem e não é compartilhado por outros membros dessa grande família itinerante que se acostumaram com um cotidiano sem luxos e finanças escassas. As razões para seu desgosto podem estar em seu relacionamento com seu pai Valdemar (Paulo José), que lidera o circo e dá vida ao palhaço Puro Sangue. Ironicamente, entre tantas dúvidas e melancolia, Benjamim fica obcecado pela ideia de conseguir um ventilador para a namorada do pai, a dançarina Lola (Giselle Motta), como se a aquisição desse objeto que para tantos já é algo obsoleto significasse um sinal de que as coisas vão melhorar ou simplesmente uma desculpa para o protagonista descobrir pelo menos um pouquinho do mundo que até então desconhecia. Durante o trajeto, diversos tipos bizarros cruzam seu caminho e o ajudam em sua busca que no fundo é a procura por sua real identidade.

O roteiro criado pelo próprio Mello em parceria com Marcelo Vindicatto transita com facilidade entre a melancolia e a felicidade explorando nos diálogos as tristezas e dificuldades que os artistas circenses enfrentam. Por exemplo, Benjamim é praticamente um indigente.  Não tem mais do que uma certidão de nascimento para comprovar sua existência, porém, seu trabalho exige que ele não crie raízes por onde passa. Sua história de vida até aqui está totalmente presa ao mundo do circo do seu pai, mas ele almeja outros rumos para sua trajetória. Ou seja, o palhaço está em um momento da vida que está passando por uma crise existencial e questionando seu trabalho. A ideia do longa surgiu justamente por causa de uma fase semelhante que o próprio Mello passava. Sua crise existencial o inspirou a investir em uma história protagonizada por um personagem que literalmente busca sua identidade no mundo, pois chegou o momento em que caiu a ficha que ele não teve chances para conhecer a vida fora das tendas de lonas do circo. Ele não escolheu ser palhaço, simplesmente foi inocentemente levado a se tornar um por falta de oportunidades para ver a vida por outros ângulos, mas a famosa fase rebelde pela qual todo ser humano passa o tomou de assalto tardiamente. Como diz o ditado popular, antes tarde do que nunca. O contraste entre a alegria do picadeiro e o vazio dos bastidores sentido pelo protagonista é perfeitamente exposto graças a uma excelente direção de arte e de iluminação que aqui assumem papéis de extrema importância para ajudar a contar esta história que nos apresenta outro lado do mundo circense e nos desperta a dar mais valor aos profissionais que escondem suas verdadeiras facetas atrás de maquiagens coloridas e sorridentes, viés pouco original já que são de conhecimento público diversas histórias de artistas circenses que divertiram muitas gerações, mas que na realidade passaram anos e anos sofrendo em silêncio por diversas razões.  Todavia, a repetição do argumento referente a melancolia destes profissionais em nada diminui o valor desta obra, pelo contrário, é até possível dizer que ela conta com um pouco do espírito do clássico Os Palhaços do mestre Frederico Fellini. Aos poucos o bom humor explicitado nas cenas iniciais abre espaço para que o roteiro explore outros caminhos a partir do momento em que tomamos contato com a vida desses artistas e percebemos que nem tudo são flores. A cada nova cidade que visitam não se sabe o que pode acontecer, aliás, eles vivem na incerteza, inclusive se haverá o espetáculo de amanhã. Suas únicas certezas são de que no dia presente precisam transmitir de qualquer maneira alegria mesmo que para um minguado público e se eles próprios não estiverem no pique.

O protagonista da trama traz um apanhado de referências que lembram o humor quase sempre presente nas interpretações de Mello, mas na verdade Pangaré foi oferecido a outros destaques do nosso cinema como Wagner Moura e Rodrigo Santoro, mas suas agendas abarrotadas de compromissos não permitiram suas participações. Há males que vem para o bem. Ao comprometer-se a frente e atrás das câmeras, Mello comprova que cada vez mais está se aprofundando na arte cinematográfica fazendo jus aos números estonteantes de pessoas que ele já levou às salas de exibição durante toda a sua carreira que parece ter chegado ao seu ápice com esta obra. Ele pode surpreender com novos projetos, seja só como ator ou como diretor ou ainda acumulando as duas funções ou até mais, porém, a importância deste filme dificilmente será abalada simplesmente pela delicadeza e sensibilidade com que este profissional conduziu um filme repleto de significados e reflexões que não se prendeu a atender aos anseios de plateias de exímios intelectuais, mas procurou atrelar-se a uma arte popular para atingir a um público bem maior. Por se tratar de um “projeto-terapia” com o qual Mello procurava um novo sentido para dar a sua carreira, ele poderia ter criado um protagonista escritor, artista plástico ou filósofo, mas foi buscar no circo a inspiração, talvez uma forma de fazer as pazes com seu público órfão da TV que o aplaudiu em obras como O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, mas não reconheceu o ator em trabalhos mais densos como O Cheiro do Ralo e Jean Charles. Outros destaques do longa são as presenças de Danton Mello, Jackson Antunes, Tonico Pereira, Emilio Orciollo Neto e dos humoristas Jorge Loredo e Moacyr Franco, este último ganhando um reconhecimento que talvez jamais esperasse receber aos 75 anos de idade e curiosamente estreando na sétima arte. E claro que também vale ressaltar Paulo José atuando com muito prazer e emprestando ao seu idoso palhaço todo seu carisma e verdade. O Palhaço tem todos os ingredientes necessários para ser considerado um dos grandes sucessos do nosso cinema recente, ainda mais se levarmos em consideração as dificuldades para se contar uma história que flerta com a leveza, o bizarro e a dura realidade sem precisar dar um soco no estômago do espectador como geralmente é feito por nossos cineastas. Com enredo bom, elenco afiado, produção caprichada, apoio da imprensa para divulgação, o longa conseguiu achar uma brecha para adentrar nos multiplex de alguns shoppings e participou de festivais e mostras de cinema antes da estreia oficial. Para confirmar o triunfo desta sensível e bela obra, basta deixar a criança que existe em você falar mais alto e mergulhar fundo na magia do circo, mesmo que com um pezinho fincado em uma triste realidade. Ainda bem que existem pessoas como Mello para nos mostrar que as coisas boas e simples da vida rendem maravilhosas e envolventes histórias sem precisar de efeitos especiais, tridimensionais, som de última geração e tudo o mais que só serve para escamotear a falta de conteúdo. Parabéns a ele, aos profissionais do circo e a todos aqueles que se permitirem viver a experiência de assistir a este filme, um espetáculo literalmente.

Drama - 90 min - 2011 

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