sexta-feira, 7 de abril de 2017

A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO

NOTA 9,0

Drama que enfureceu católicos
no final dos anos 80 ainda tem

potencial para impactar, mas parece
que suas chagas foram esquecidas
Todo e qualquer filme com conteúdo religioso ou mais especificamente que evoque a imagem de Jesus Cristo de alguma forma costuma gerar polêmicas assim que surgem as primeiras notícias de que alguém terá coragem de mexer com esse vespeiro, principalmente quando tal figura cristã será retratada com toques mais realistas e desprovida do semblante de ser iluminado e livre de pecados que a maioria dos católicos se apegam em suas preces. Mel Gibson deu a cara para bater assumindo a direção do polêmico e angustiante A Paixão de Cristo em 2004 e lucrou alto, mas dezesseis anos antes Martin Scorsese não teve a mesma sorte. Grupos conservadores atacaram ferozmente A Última Tentação de Cristo, drama literalmente longo baseado no romance homônimo de Nikos Kazantzákis publicado originalmente em 1951. Lançado nos EUA de maneira estratégica em poucas salas 40 dias antes da data prevista para gerar burburinho na mídia e consequentemente enfraquecer os comentários negativos dos cristãos, o filme começa já com o aviso de que não é baseado nas escrituras do Evangelho e que seu real objetivo é falar do conflito entre o espírito e a carne ou em outras palavras da razão versus o desejo tomando como instrumento Jesus Cristo imaginando como seria sua vida se caísse em tentação. O ator Willem Dafoe dá vida ao protagonista, um carpinteiro da Judeia que vive um grande dilema, pois é ele quem faz as cruzes com as quais os romanos crucificam seus oponentes, os judeus, assim ele se sente um traidor perante seu povo. Sua revolta interior o faz se sentir constantemente inquieto e o leva a se autopenitenciar sem piedade. Além disso, ele tem plena fé de que Deus tem um plano traçado que justificaria sua presença entre os mortais, mas ao mesmo tempo não se vê como um messias e sim um homem comum que tem necessidades carnais e precisa relutar contra seus desejos, ainda que não saiba bem o porquê. Judas Iscariotes (Harvey Keitel) havia sido designado a matar Jesus, mas ao suspeitar que ele é um enviado do Senhor pede para liderar uma revolução contra os romanos, porém, recebe como resposta de que o amor é a sua grande mensagem para a humanidade. Procurando resolver seu conflito interior, o carpinteiro decide ir para o deserto vivenciar uma espécie de retiro espiritual, mas antes pede perdão a Maria Madalena (Barbara Hershey), uma prostituta que acreditava que o relacionamento entre eles podia ser sua salvação. Mesmo brigados, mais tarde o rapaz a salva de uma multidão que se reuniu para apedrejá-la lembrando que todos tem seus pecados e merecem perdão.

No deserto, Jesus testa sua conexão com Deus desafiando as forças do Mal que se apresentam na forma de uma cobra, um leão e uma grande labareda de fogo que tentam desvirtuar seu caminho, mas ele vence todas as tentações e se depara com a imagem de um machado que surge como resposta ao seu dilema em seguir o caminho da revolta e violência ou optar pela trilha do amor simbolizada por um coração. Ele escolhe a segunda opção e vai ao encontro de seus discípulos que passam a presenciar os milagres de Jesus como a restauração da visão de um cego, a transformação da água em vinho e a volta de Lázaro (Tomas Arana) do mundo dos mortos, este que depois acaba sendo friamente assassinado por soldados romanos, pois ele seria a prova definitiva da presença de um messias entre os mortais. Quando Jesus é capturado com a ajuda de Judas atendendo a um pedido seu, o messias é confrontado por Pôncio Pilatos (David Bowie) que lhe sentencia a morte por lhe considerar uma ameaça ao Império Romano. Antes disso, em público quando criticava o mercado de troca de moedas que havia se tornado o Templo de Jerusalém, o carpinteiro já tinha recebido um sinal divino de que seu sangue deveria ser derramado para salvar a humanidade e por isso se conformou com sua crucificação. É nesse momento que temos a justificativa do título. Em uma alucinação, Jesus escapa da morte graças a uma garotinha (Juliette Caton) que se apresenta como seu anjo da guarda dizendo que foi enviada por Deus para agradecer tudo o que ele fez até então e que seu desejo é que ele seja feliz como um homem comum. Assim, de forma invisível aos olhos dos outros, ele reencontra Maria Madalena e pensa em formar uma família, mas uma tragédia acontece e outros eventos que a sucedem fazem Jesus refletir se não teria sido melhor morrer, ter fugido da última tentação. Esse último ato não é um devaneio do autor do livro e tampouco do roteirista do filme, Paul Schrader repetindo a parceria com o diretor do cult Taxi Driver. O islamismo prega a crença de que Cristo escapou da crucificação e levou uma vida comum até ter uma morte natural bem velhinho, pensamento difundido por Maomé que considerava a si mesmo como um profeta. Reimaginar o final de uma das histórias mais famosas e reverenciadas do mundo não foi nada fácil e os bastidores desta produção praticamente renderiam outro filme, dramatizado ou em estilo documentário. Scorsese havia ganho um exemplar do livro em 1972 da amiga Barbara Hershey e se encantou pela trama densa e prosa rebuscada e desde então sua obsessão era fazer a sua adaptação cinematográfica. O longa começou a ganhar corpo em 1983 sob a batuta do estúdio Paramount. Com elenco escalado e locações escolhidas em Israel, o projeto foi abruptamente cancelado pelo orçamento elevado e as mensagens de protestos que a companhia recebeu de grupos religiosos.

Três anos depois a Universal se interessou pelo material e Scorsese propôs rodar o filme com metade do orçamento original e em tempo recorde. Foram três meses de trabalho intenso no Marrocos, com direito a muita improvisação, mas o resultado final é uma bela obra-prima e a prova de coragem de uma empresa confiante (pelo menos na época) que a arte vem em primeiro lugar, afinal já sabiam das críticas negativas que enfrentariam pelo fato do longa bater de frente com um dos principais ensinamentos da Igreja Católica: a natureza humana e ao mesmo tempo divina de Cristo. No filme ele é apresentado como um homem comum e que aos poucos vai desenvolvendo a consciência de que é um ser elevado espiritualmente. Scorsese, portanto, quebrava um protocolo. Filmes mais antigos não chegavam nem a mostrar o rosto do ídolo católico, o representavam através de fachos de luz, voz ou algum tipo de sinal, e os que ousavam apresentá-lo fisicamente o dotavam de alguma característica que o tornaria único, tal como uma aura iluminada ou em tamanho maior que uma pessoa comum. O Cristo vivido por Dafoe, em excelente interpretação, se perde facilmente na multidão devido ao seu visual realista e, apesar de sempre ter alguma mensagem de conforto na ponta da língua, um semblante pesado que sempre o acompanha devido as angústias que tenta digerir mesmo quando se assume como um líder. Apesar de desconstruir de certa forma a imagem esplendorosa cultivada pelos católicos, isso é feito com muito respeito e consciência. Pode também ter contribuído para a revolta dos religiosos mais fervorosos, que incendiaram cinemas e chegaram a ameaçar Scorsese de morte, o fato do apóstolo Paulo (Harry Dean Stanton), que surge com força na reta final, ser apresentado como uma figura desprezível e que lança mão até de mentiras para defender seu credo, uma alusão aos caminhos tortuosos seguidos pelo cristianismo ao longo da História varrendo muitos fatos sujos para debaixo do tapete para manter sua influência. O tempo passou, mas infelizmente A Última Tentação de Cristo continua sofrendo com seus estigmas, ou pior, nem eles mais provocam dor, simplesmente a obra foi esquecida. Esta é uma grande injustiça com uma produção refinada, brilhantemente dirigida e interpretada e com fotografia e locações que desbancam muita superprodução atual, e obviamente não se pode deixar de fazer um último elogio à narrativa que embora lenta consegue prender a atenção utilizando metáforas quanto a conceitos religiosos que resgatam passagens bíblicas e outras que fazem alusão ao que a religião se tornou na Era Moderna, uma sutil crítica que não se restringe ao catolicismo e que se faz atual até os dias de hoje. Quem sabe se as premiações tivessem realmente reconhecido os méritos desta produção ela poderia estar ostentando o status de clássico. O Oscar só indicou Scorsese ao prêmio de direção, desprezando totalmente os irrepreensíveis aspectos técnicos do longa. Hershey ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante, mas como explicar o fato de que Keitel venceu o Framboesa de Ouro de pior coadjuvante? Compare com os atores que ganharam as últimas edições deste “prêmio-fanfarra” e chegamos a seguinte conclusão: não se faz mais cinema como antigamente. O nível descambou definitivamente.

Drama - 163 min - 1988

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9 – 10 Excelente, praticamente perfeito do início ao fim
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