NOTA 8,0 A partir de um mesmo ponto de partida, longa apresenta três versões para o futuro de um casal em uma narrativa envolvente e bem amarrada |
O início da década de 1990 marcou
a estagnação do cinema nacional, ou melhor, seu declínio, talvez sua pior fase.
Empresas quebraram, o governo deu uma rasteira econômica nos produtores e os
poucos filmes lançados foram finalizados a duras penas e provavelmente mais com
o intuito de satisfazer o ego de seus realizadores. Público mesmo não
esperavam. A segunda metade da década já foi marcada por um reaquecimento da
indústria com produção mais regular, salas de exibição mais generosas e apoio
para divulgação. A partir do ano 2000 as pessoas pararam de se envergonhar e
começaram a assumir com orgulho: vou ao cinema assistir filme nacional! O mesmo
acontecia com a ida às videolocadoras que então colocavam o acervo recente
verde e amarelo em destaque, não mais escondidinho em um canto qualquer. Claro
que para tanto a produção passou por uma recauchutada e os realizadores
precisaram tentar se aproximar a um estilo mais hollywoodiano e Amores Possíveis é um bom exemplar. Não fez
fortuna e tampouco levou multidões para as salas escuras, mas representou um
salto qualitativo, tanto narrativo quanto de parte técnica. A trama entrelaça
três possibilidades de encaminhamento para o futuro de Carlos (Murilo Benício)
e Júlia (Carolina Ferraz), que marcaram de ir juntos ao cinema em uma noite
chuvosa, mas a moça não apareceu. A partir disso a diretora Sandra Werneck
devaneia sobre o que aquele desencontro poderia ocasionar em suas vidas quinze
anos depois. O rapaz poderia se tornar um respeitado advogado, mas levar uma
vida acomodada ao lado da esposa Maria (Beth Goulart) e ficar balançado ao
reencontrar seu amor do passado. Em outra versão, ele até teria casado com
Júlia e se tornaria pai, mas assumiria ser homossexual e trocaria a esposa por Pedro
(Emílio de Mello), um colega com quem jogava futebol. Por fim, a terceira ideia
seria a de que Carlos se tornaria um mulherengo dependente da mãe (Irene
Ravache) evitando qualquer relacionamento sério até reencontrar a paquera do
cinema através de uma agência de encontros acreditando de fato ela ser a mulher
da sua vida.
Embora não seja continuação ou
busque alguma ligação, Werneck começa este romance de onde encerrou a trama de
seu Pequeno Dicionário Amoroso, fita
modesta que teve incrível repercussão quando lançada abordando o
desenvolvimento da relação de um casal até seu rompimento. Os personagens aqui
são outros, mais jovens e conectados com a plateia do novo milênio que estava
prestes a começar, mas inicia sua trama justamente a partir da separação.
Trabalhando novamente com a temática romântica e com um quê de produção
hollywoodiana, a cineasta se dava ao direito de aperfeiçoar seu trabalho e ao
mesmo tempo não passar em brancas nuvens pelos cinemas, chegar ao público que
almejava sem grandes dificuldades, ainda mais se aproveitando do fato dos
protagonistas na época de fato viverem um romance na vida real. A ideia de
imaginar o que um simples ato de hoje implicaria no futuro já não era uma
novidade, inclusive pouco antes havia sido lançado De Caso Com o Acaso no qual Gwyneth Paltrow se desdobrava para
apresentar duas versões do destino de sua personagem e o alemão Corra Lola, Corra fez sucesso no
circuito alternativo com seus vários desfechos para uma mesma introdução.
Todavia, a maneira como um boa e velha ideia é executada faz toda a diferença e
Werneck foi esperta ao filmar as histórias individualmente e não
simultaneamente, assim evitou problemas com os atores misturando as
personalidades de seus personagens e preservou a caracterização diferenciada. A
edição caprichada entrelaça as três versões de forma fragmentada, mas jamais
sendo algo confuso, graças também ao roteiro inteligente e sensível de Paulo
Halm, escrito a partir de um argumento original da própria diretora e de sua
filha, Maya Werneck Da-Rin. Inclusive o tema da homossexualidade é extremamente
bem inserido, colocado com a naturalidade que deveria ser encarado no
cotidiano. O filho de Carlos, interpretado por Alberto Szafran, não vive da
mentirinha de que papai foi dividir o apartamento com um amigo e encara sem
preconceitos tal relação.
O segundo longa-metragem da
carreira de Werneck estreou com o respaldo do reconhecimento em âmbito
internacional. Depois de ser vice-campeão no laboratório de roteiros do
Festival de Sundance, a obra foi exibida em uma mostra paralela da própria premiação
e saiu consagrada como melhor filme latino-americano, ainda que empatada com uma
produção mexicana. O longa então
exalava uma refrescante maturidade para o cinema nacional buscando inserir-se
em um movimento em alta na indústria mundial: a dos filmes-mosaicos.
Independente de ter apenas dois ou uma dúzia de personagens em destaque,
produções do tipo exigem apuro técnico e concentração máxima da direção e dos
intérpretes que devem ter em suas mentes toda a trama claramente definida tal
qual o espectador deve compreendê-la. Obviamente, fica um pouco difícil manter
o mesmo nível de qualidade e envolvimento nas três histórias. A do Carlos
passional é sem dúvida a menos interessante, até porque Benício interpreta o
tímido que já se acostumara a interpretar em novelas. Contudo, ele brilha como
o marmanjo mimado que carrega nas gírias tipicamente cariocas, o ato que injeta
humor ao longa, e mostra-se desenvolto na versão gay do personagem consciente
da importância de tratar a temática sem estereótipos. Já Ferraz acaba sendo um
pouco engolida pelo talento do parceiro, chamando atenção apenas com sua Júlia
amargurada e preconceituosa por ter sido trocada por um homem. Enquanto o filho
até sente falta do namorado do pai nos momentos das refeições, sua mãe faz
recomendações do tipo que se ele for fazer xixi na outra casa tem que trancar a
porta para não virar alvo de um pedófilo. Em paralelo, Ravache diverte-se
inserida em uma trama que brinca com o famoso complexo de Édipo (o amor
exagerado entre mãe e filho) e Mello compõe versões diferenciadas de
homossexuais para cada um dos segmentos. Seja enrustido, assumido ou dando
pinta sem pudor, o ator dá um show de interpretação. Apresentado em embalagem
sofisticada, algo acentuado por sua trilha sonora com grandes nomes do passado
da música popular brasileira aliados a novos talentos que surgiram em meados de
2000, Amores Possíveis fala sobre o
equilíbrio entre o poder masculino e a força feminina em uma relação, discute o
casamento enquanto instituição e dá voz ao coração ao versar sobre três formas
de amar, além de explicitar o amor de Werneck por seu trabalho, pelo cinema.
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