sábado, 29 de janeiro de 2022

CHRISTINE - O CARRO ASSASSINO


Nota 8 As carências de um jovem suprimidas por veículo que assume papel possessivo em sua vida


Ter medo de dirigir é algo bastante comum, mas ter fobia de um carro, em sua figura propriamente dita, é um tanto estranho. Contudo, o mestre do terror John Carpenter provou com Christine - O Carro Assassino que tal repulsa tem fundamentos e faz total sentido. Claro que isso no âmbito da fantasia, mais especificamente dentro do universo de outro mestre do gênero, o escritor Stephen King. A trama se passa em 1978 e tem como protagonista Arnold Cunningham (Keith Gordon), ou simplesmente Arnie, um adolescente não muito popular, sempre ameaçado pelos valentões e que vive à sombra de seu melhor amigo, Dennis Guilder (John Stockwell), o astro do time de futebol do colégio e alvo de desejo das garotas, o estereótipo do jovem de sucesso. O tímido rapaz ainda tem que conviver com sua mãe repressora, Regina (Christine Belford), que parece não querer que ele cresça. Sua vida muda completamente quando avista em um ferro-velho a carcaça da velha Christine, um glamoroso exemplar do Plymouth Fury vermelhão embora deteriorado, e torna-se obcecado pelo veículo. Ele junta suas economias e o compra passando a dar-lhe mais importância do que a tudo e a todos, inclusive sua família e Leigh (Alexandra Paul), a garota por quem era apaixonado. 

Dennis tenta ao máximo alertar o amigo sobre sua mudança de comportamento e obsessão pelo seu novo brinquedinho, mas diante das agressões e repulsa que passa a sofrer pouco a pouco começa a se afastar. Desse ponto em diante já é possível prever os próximos acontecimentos. Nesta relação de amor entre homem e máquina, onde o carro assume praticamente uma postura humana quanto ao ciúme e senso de justiça, o jovem Arnie não percebe suas mudanças de personalidade, mas tem consciência de que está encobrindo crimes cometidos pelo seu veículo que literalmente ganha vida quando se trata de proteger seu dono a quem deve sua sobrevida. Detalhe, seu velho rádio interno serve como forma do possante se expressar, sempre com boas canções de rock, mas cujas letras são escolhidas a dedo para amedrontar qualquer um que estivesse dentro ou fora dele. Ao contrário do livro que começa desenvolvendo o perfil e universo de Arnie, a abertura do filme prioriza o verdadeiro protagonista da história e já dá a tônica da narrativa escrita por Bill Phillips. Com a tela totalmente preta o silêncio é quebrado pelo ronco de um motor, como se um carro desgovernado pudesse surgir a qualquer momento. Em seguida acompanhamos o processo de montagem de Christine que fora fabricada em meados da década de 1950 e Carpenter não faz a menor questão de esconder o jogo. Logo de cara deixa claro que não se trata de um carro comum, existe uma força sobrenatural em seu comando que trata de decepar os dedos de um mecânico e depois matar um outro homem esmagando-o com seu estofamento. 


Mesmo com os acidentes o carro veio a ter vários donos, um em especial que desenvolveu tamanha fixação por seu possante que o tratava como uma figura feminina e foi o responsável por batizá-la, um detalhe que frisa ainda mais o poder desta máquina. Todavia, ele também foi vítima de indesejados acontecimentos e Christine acabou sendo  abandonada e sofrendo com a deterioração do passar do tempo. Desde então George LeBay (Roberts Blossom), o irmão do antigo proprietário, manteve a carcaça no quintal de sua casa perdida no meio do nada. Mesmo sabendo dos eventos estranhos que envolvem o carro, ele próprio incentivou Arnie a comprá-lo, mas contou toda a história para Dennis que tenta de todas as formas tirar o amigo do transe que se encontra. Quando se é jovem é natural o desejo de ter um veículo próprio como se tal objeto fosse necessário para atestar a conclusão de uma fase de transição para a vida adulta. Com ele você ganha liberdade, pode sair a hora que quiser e para onde bem entender, é de certa forma uma necessidade para quem deseja manter amizades e namorar... Para Arnie que era mirrado, tímido, submisso e que nutria certa inveja do único amigo, ser o proprietário de um belo carro era mais que uma questão de status, mas principalmente de autoafirmação perante a sociedade. Sua dedicação para resgatar a beleza original de Christine é recompensada pela máquina que em um passe de mágica transforma a vida do rapaz que se torna alvo das atenções no colégio bancando o gostosão. Christine teve um relacionamento traumático com seu último dono e ficou aguardando pacientemente até encontrar alguém que pudesse ser devota, ou melhor, a quem pudesse manipular. Encontrou o par perfeito.

Carpenter resgata algumas trucagens de suspense que usou em Halloween - A Noite do Terror para mostrar que o medo é algo subjetivo, cada um de nós o sente e lida de maneiras diferentes. Assim como seu temido serial killer Michael Myers aterrorizou através de sua respiração ofegante acompanhada da câmera como se fosse seu próprio olhar, aqui ele dá destaque todo tempo aos faróis de Christine, como se estivessem sempre observando quem a ronda, e aos seus mínimos ruídos que podiam indicar um ataque surpresa. Alguns personagens ignoram tais sinais enquanto outros percebem o perigo iminente. As mortes em si são consequências, nem causam tanto impacto. Colocando o veículo como vilão implacável, o diretor aproveita-se dos ensinamentos de Steven Spielberg em um de seus primeiros trabalhos, Encurralado, no qual um homem é perseguido incessantemente por um caminhão que parece movido pela sede de vingança. Por fim, para atenuar a tensão da trama, dá ênfase ao universo juvenil com a abordagem das primeiras experiências sexuais, a necessidade de aceitação e o bullying (na época a prática tão comum quanto hoje, mas ainda sem tal alcunha). Também podemos perceber alguma inspiração nos clássicos Carrie - A Estranha (a sensação de poder que a vingança oferece) e O Iluminado (a loucura e obsessão do protagonista), ambos também baseados em livros de King. 


Sem surpresas, Gordon se destaca no elenco com uma atuação intensa e eclipsante nos momentos em que trava monólogos tomado por sua paixão obsessiva. A transformação do rapaz retraído para alguém de temperamento explosivo pode não ser muito sutil, mas é perturbadora, principalmente nas cenas em que Arnie enfrenta a mãe deixando explícito que seu carro é prioridade em sua vida. Pena que tal relação entre homem e máquina não seja explorada a fundo em Christine - O Carro Assassino, afinal a proposta é assustar. Carpenter economiza no gore, prefere insinuar o terror, mas as poucas cenas de morte são bem feitas e com bastante tensão. Apesar de no Brasil a obra ter ganho um subtítulo desnecessário e estraga prazeres, ela é um marco da década de 1980, fez muita gente ter pesadelos e se hoje pode não ser tão assustadora quanto outrora ao menos pode contar com o fator nostalgia a seu favor.

Terror - 110 min - 1983

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