segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

ENCANTADORA DE BALEIAS


Nota 8 Obra aborda tradição versus modernidade com garota que desafia as crenças de seu povo


Em tempos de sociedade globalizada, é uma atração e tanto quando podemos assistir ou participar de festejos tradicionais de outras nacionalidades, no entanto, geralmente quando o cinema quer abordar tal assunto acaba utilizando o viés do humor apostando no clichê da guerra entre os mais velhos tentando defender crenças e costumes contra os mais jovens que inevitavelmente acabam seduzidos pelos fascínios e novidades da modernidade. Quando o tema já envolve povos seculares e com risco de serem dissolvidos a coisa já ganha um tratamento mais respeitoso como é o caso do drama Encantadora de Baleias que enfoca uma tribo Maori tentando preservar suas tradições ao mesmo tempo em que procura evitar a degradação cultural e o choque de gerações. Produzido entre a Alemanha e a Nova Zelândia, o longa escrito e dirigido por Niki Caro, de Terra Fria, é baseado na obra "The Whale Rider", de Witi Ihimaera. A trama se baseia em uma antiga lenda do povo neozelandês que afirma que um dia, cavalgando nas costas de uma baleia que domou, surgiu um líder de nome Paikea, uma espécie de semideus que após ter sua canoa virada conduziu seus semelhantes até um local seguro para viver. Os maori, povo típico local, acreditam ser descendente deste herói e que um dia ele reencarnaria em um membro das novas gerações para mais uma vez guiá-los para tempos melhores. 

Assim como todos os demais indígenas, os maori sobrevivem em grupos pequenos e tentam resistir a passagem do tempo e a diluição de sua cultura. A fim de manter os ritos de seus ancestrais, Koro (Rawiri Paratene) está a procura de um futuro líder para a sua comunidade, porém, se decepciona com a surpresa que o destino lhe reservou. Descendente dos chefes da tribo Whangara, linhagem com ligação direta a Paikea, ele tinha certeza que assim que tivesse um neto este seria o líder natural de sua aldeia seguindo a crença de que o primogênito de cada geração dos seus nasceria com uma missão a ser cumprida para o bem de seu povo. No entanto, sua nora dá a luz a um casal de gêmeos, mas o parto complicado acabou levando a morte mãe e filho. A menina é batizada com o mesmo nome do lendário líder, porém, é mais conhecida como Pai (Keisha Castle-Hughes) e cresce sob os cuidados dos avós já que seu pai traumatizado com os problemas do parto preferiu se mudar para a Alemanha para reconstruir sua vida. Tradicionalista, Koro não aceita que a neta assuma o posto de líder espiritual por ser mulher e está disposto a encontrar outro sucessor. De qualquer forma, ele cuida com amor da garota, mas prefere manter certo distanciamento pelo peso que sente por não ter conseguido dar continuidade a crença de sua tribo, ainda mais em tempos em que restaurar a dignidade perdida deles era uma necessidade e tanto. No fundo, ele culpa Pai pela morte do irmão e a relação entre eles se complica quando ela começa a dar mostras de liderança e determinação com apenas onze anos de idade. 


Enquanto o avô ensina as tradições ancestrais aos meninos da aldeia a fim de achar entre eles um líder nato, Pai quer provar que pode sim assumir o papel que teoricamente seria de seu irmão se virando como pode para aprender os rituais e danças do seu povo, assim como também se arrisca a treinar a luta típica. Além desses esforços, que podem significar um desrespeito ou o início de um novo tempo para seus semelhantes, a menina também é esforçada na escola. Dedicada, inteligente, com talento para a escrita e o dom para falar em público, em todos os aspectos ela corresponde ao perfil que se espera de um descendente de um ancestral poderoso e sábio. Apesar de cada vez mais o comportamento do avô em relação a neta se tornar hostil, da parte da garota sentimos que ela realmente o ama e está disposta a tudo para conquistar o mínimo de sua atenção, até mesmo colocar sua própria vida em risco. A primeira vista pode parecer que esse gancho dramático é desinteressante, restrito a audiência local, mas se analisarmos bem ele é um tema universal, pois basicamente trata do choque de gerações. Simplificando, é como aquelas velhas discussões do idoso que aprecia música clássica que não compreende o gosto pelo rock dos jovens e vice-versa, porém, neste caso não é uma briga tola sobre gostos, mas sim um problema que envolve valores sérios como cultura e religião, ou seja, a preservação das características um povo já ameaçado externamente e que neste momento se vê com um conflito interno grave que pode significar uma autoflagelação ou o início de um novo ciclo. Arriscar ou não? Eis a questão. 

Castle-Hughes e Paratene conseguem emocionar o público com interpretações verdadeiras, ela deixando transparecer todo o sentimento amoroso que tem pelo avô e ele, por sua vez, equilibrando-se entre a bondade e a seriedade que seu personagem exige. Paralelo a esse drama familiar, Caro busca discutir temas contemporâneos e importantes como a forma que os costumes ocidentais penetram e modificam as comunidades mais primitivas, porém, evita que o assunto roube a cena. A diretora não se mostra a favor e tampouco contra o movimento da globalização, mas busca propor uma reflexão sobre os prós e os contras dessas mudanças. Embora tudo seja mostrado pela ótica de uma criança (Paikea narra boa parte da trama em off), não espere ver aquelas cenas clichês de indígenas encantados ou assustados com engenhocas e bugigangas tão comuns ao nosso cotidiano. Por outro lado, pode surpreender a imagem de jovens locais bebendo cerveja e fumando maconha, hábitos que não imaginamos vindos de pessoas criadas sob rígidos padrões morais e religiosos e distantes das civilizações ocidentais. O embate entre o tradicional e o atual se faz neste caso pelo viés social e histórico, o antiquado pensamento de que o homem é que tem o dever de ser forte e dotado do poder da liderança enquanto as mulheres devem ser submissas e restritas aos afazeres domésticos e procriação. Com pensamentos anacrônicos do tipo em choque com as mudanças naturais de qualquer sociedade, cada vez mais os maori vão perdendo sua identidade e a protagonista é a responsável por fazer com que o espectador conheça e participe de seu universo, praticamente um mundo a parte ao qual ela quer ensinar um novo caminho a ser seguido: o do equilíbrio.


O velho e o novo podem e devem sim dividir o mesmo espaço, afinal não existe futuro sem um histórico de passado. Essa é uma grande mensagem deixada por Encantadora de Baleias para um mundo que a cada dia procura destruir valores tidos como ultrapassados e criar outros que parecem não ter fundamentos, o que justifica o estado de caos constante em que vivem a maioria das sociedades. Focada em relacionamentos humanos e na dificuldade da tolerância, Caro constrói uma belíssima obra que lhe exigiu alguns cuidados para assegurar a sua autenticidade como filmar nas mesmas áreas indicadas nas passagens do livro e utilizar representantes maoris para atuarem. Aproveitando-se dos belíssimos cenários da Nova Zelândia, o resultado é de uma beleza plástica incontestável assim como sua narrativa correta e emocionante. Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (na época Castle-Hughes a mais jovem a ser nomeada na categoria) e apresentado e premiado em diversos festivais, o longa é acusado de não trazer novidade alguma além de uma providencial pitada de exotismo a um tema bastante explorado. Seja como for, o tradicional, neste caso, é muito bem-vindo.

Drama - 108 min - 2002 

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