quarta-feira, 1 de novembro de 2023

PLEASANTVILLE - A VIDA EM PRETO E BRANCO


Nota 9 Com muita criatividade, obra critica a hipocrisia de uma sociedade avessa a transformações


Quem nunca ouviu alguém mais velho relembrando como a vida era boa antigamente? Para quem passou longe dos considerados bons tempos do século 20 o cinema é uma ótima fonte de referências para ter uma ideia sobre costumes, moda, comportamento entre outras coisas, influências que certamente geraram desdobramentos futuros. Se quando lançado Pleasantville - A Vida em Preto e Branco já carregava um irresistível apelo nostálgico por resgatar a década de 1950, visto anos mais tarde a experiência é ainda mais gratificante por também servir como um retrato do finzinho daquele século. O diretor e roteirista Gary Ross oferece um filme que de certa forma reverencia o cinemão clássico de Hollywood apostando em uma singela, porém, belíssima fotografia em preto-e-branco. Poderia ser apenas um detalhe técnico, mas tal escolha é peça fundamental da narrativa cuja ideia central é fugir de padronizações impostas. A trama começa em época contemporânea ao lançamento do filme, mais especificamente o ano de 1998, nos apresentando aos irmãos David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon), jovens estudantes que na sala de aula são bombardeados com péssimas notícias e estatísticas a respeito do mundo para um futuro não muito distante. O mercado de trabalho ficará cada vez mais acirrado, o efeito estufa poderá destruir o planeta, a juventude se tornará refém de doenças derivadas de atos prazerosos e por aí vai. 

David é muito pacato e foge dessa triste realidade curtindo seu passatempo preferido que é assistir "Pleasantville", um seriado das antigas e politicamente correto ao extremo, enquanto sua irmã já é bem mais inquieta, namoradeira e não é uma audiência cativa do programa. Certo dia eles discutem por conta do controle remoto da televisão que acaba quebrando ao cair no chão. Imediatamente um técnico (Don Knotts) é chamado e lhes oferece um novo acessório e com o apertar de um simples botão a dupla acaba parando dentro da tal sitcom que se passa em uma cidade fictícia que é uma verdadeira utopia. Lá tudo é perfeito e os intrusos do futuro acabam virando personagens da trama, porém, intencionalmente ou não, suas ações moderninhas acabam desvirtuando este mundo ideal, a começar pelas cores que começam a tomar conta deste acinzentado ambiente, para alegria de alguns e a ira de muitos outros. Há então uma ruptura desta sociedade puritana. A inocência dos habitantes vai minando pouco a pouco no mesmo compasso em que Jennifer, interpretando à força Mary Sue, vai desvendando a falsa beleza que rege a cidade. Livros não passam de páginas em branco, os banheiros são desprovidos de sanitários, as possibilidades de incêndios ou outras tragédias parecem ser totalmente descartadas, estranhamente não há negros por ali e o mapa local começa e termina na mesma rua.  Além disso, não há problemas financeiros ou desemprego, as casas são belas e aconchegantes, todos já despertam esbanjando alegria, conflitos de qualquer espécie não são registrados e o prazer carnal é proibido ou até mesmo desconhecido por alguns. 


Já o rapaz, acostumado com a ação farsesca da série, realiza o sonho de qualquer fã em fazer parte da narrativa que tanto o deslumbrava, assim tenta se encaixar no contexto de seu personagem Bud, mas também têm dificuldades para lidar com certos detalhes e logo começa a perceber que sem conflitos e novidades a vida pacata dentro do seriado não tem graça alguma. Assumindo os papeis de filhos do casal Betty (Joan Allen) e George Parker (William H. Macy), os irmãos finalmente entram em acordo em alguma coisa e decidem reescrever o enredo e a partir do momento em que as pessoas passam a se apaixonar de verdade e se dão o direito de liberar ou experimentar emoções reprimidas a ambientação vai ganhando cores que contrastam com o monocromático predominante, dando uma noção de como a vida seria triste sem o colorido. A primeira sacudidela em Pleasantville acontece quando Jennifer revela a Skip (Paul Walker), seu paquera  na série, que o banco de um automóvel tem espaço o suficiente para fazerem outras coisas que simplesmente trocarem carícias com as mãos dadas. Após avançarem o sinal, uma bela rosa em tom vermelho sangue surge como marco inicial das mudanças. Aliás, a ausência de sexo na vida destes habitantes é constantemente ressaltado como uma ironia explícita, afinal como os Parkers poderiam ter um casal de filhos sem dividirem momentos de intimidades? A espevitada loirinha ainda dá uma aula sobre prazer sexual para sua mãe fictícia, levando a recatada senhora a sentir curiosidade em se masturbar em uma banheira e a cena culmina em chamas na árvore em frente a sua casa. 

Embalando o momento de tantas rupturas temos também uma deliciosa seleção de rock'n roll, não faltando obviamente Elvis Presley, que com seu ritmo frenético e letras com mensagens transgressoras ajudam a aumentar o coro para que as portas para um novo mundo se abram. Ross  não fez um filme que apenas reverenciava o passado, mas também uma obra em compasso com sua época de realização e cujo conceito continua completamente atual. É uma obra que fala sobre como as pessoas encaram as mudanças. Algumas com entusiasmo, outras com receio, e o contraste das cores vibrantes que surgem pouco ao pouco serve como uma metáfora óbvia, mas eficiente e envolvente. A vida perfeita é retratada em cores frias, enquanto a incerteza que as novidades propiciam ganham a tela tingidas em cores vivas. Como roteirista Ross já havia sido indicado ao Oscar pelos textos de Quero Ser Grande e Dave - Presidente Por Um Dia, obras que compartilham uma semelhança com o filme em questão e mostram um direcionamento do trabalho deste profissional. Todas elas abordam temáticas sobre pessoas comuns que de repente se veem envolvidas em eventos extraordinários. No caso, temos dois indivíduos nesta situação, mas David tem um arco dramático mais interessante. Ao peitar os costumes rígidos, ele estava fazendo um bem maior a si mesmo, se libertando de sua existência sem graça e desprovida de objetivos. 


Nesta missão, David ganha como aliado seu chefe Bill Johnson (Jeff Daniels), o dono da lanchonete que é o ponto de encontro dos adolescentes da cidade, mas curiosamente nem mesmo um X-Burger existe no cardápio. Extremamente metódico, descrevendo passo a passo seus hábitos rotineiros, no fundo o empresário tem alma de artista, mas reprimida, e precisa urgentemente romper com as normas da sociedade e terá papel fundamental neste período de transformações. Incentivado por David a expor seu talento, uma pintura com traços expressionistas é o estopim para levar a dupla para a cadeia e protagonizar o primeiro caso de julgamento de todos os tempos da cidade. Só com seu apelo visual diferenciado e seu enredo repleto de críticas à hipocrisia da sociedade, Pleasantville - A Vida em Preto e Branco logo que foi lançado foi rotulado por especialistas e pelo mercado como um filme destinado a plateias mais seletas e nem as suas três indicações ao Oscar conseguiram ampliar sua divulgação quando lançado nos cinemas. Com raras exibições na televisão, o ostracismo desta obra ironicamente acaba sendo um reflexo do caos denunciado pelo enredo, um filme que se encaixa perfeitamente na expressão pensar fora da caixinha.

Drama - 124 min - 1998

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